terça-feira, 22 de junho de 2021

Os porteiros detetives capítulo 1

1.um edifício do Andaraí




                                                           Silas


Jovem negro, 30 anos. Trabalha como porteiro no edifício do Andaraí. Cobre o turno da madrugada. Como um morcego dorme de manhã de cabeça pra baixo. Seu ônibus é o 606, seu  signo touro, seu time é o caos. Pelas tardes em seu apto no Méier, opta por concluir o seu mestrado em linguística na UERJ. Estuda remotamente devido a pandemia.
Nunca conheceu nenhum outro porteiro-linguista. Já porteiros-poetas eram todos, e em breve chegaria a conhecer e se tornar um porteiro-detetive.

                                                          Junim

Junim é um rapaz baixo de 26 anos, feições nordestinas. Carrega como uma coroa, o nome e a aspiração `a profissão do pai.

Severino Junior trabalha no edifício do Andaraí como faz-tudo.  Na carteira de trabalho está assinado “Zelador”, mas Junim é o Faz-tudo que aspira a ser Porteiro. Devoto de São Pedro ,e filho de Exú, Junim tem uma língua ágil até quando não fala nada. Seu crânio cearense lhe presenteava com olhos estudiosos, e orelhas pesquisadoras, ambas fornecedoras de dados que se abarrotavam em sua caixa craniana.

“é uma profissão muito bonita. A gente recebe as pessoas em suas próprias casas! É importante ser receptivo. As vezes alegra o dia de alguém.

Não é um serviço pra todo mundo, é preciso gostar de pessoas. Nós falamos com os moradores apenas por curtos minutos, e em certos casos  são suficientes pra conhecer toda a rotina de alguém, ou para não querer nunca mais interagir por tanto tempo com essa pessoa de novo. (Ri)”

Só que na segunda camada de seu eu, na camada mais profunda o que seduz Junim mesmo é a quantidade de informações a que uma portaria de prédio está exposta. Junim é dos que fazem das câmeras de segurança o seu BBB. Intuitivo, ele sabe perceber as mais sutis mudanças nos fluxos dos moradores a partir de seus comportamentos. Consegue perceber pelo cheiro quando alguém está para se mudar para um apartamento menor. (Cada vez mais comum com o avanço do Neoliberalismo econômico no Brasil.) Nesses casos, ele se amiga amanteigado, e se oferece para encaixotar móveis, objetos e carregar as caixas escada acima e abaixo, e assim se expõe ao risco de ganhar alguma tranqueira que o futuro ex-morador não pudesse mais ter. Nessa ele já ganhou uma televisão, um sofá, um fogão, um colchão, e uma bicicleta ergométrica, que hoje ele mesmo tenta repassar, já que ela realmente ocupa um baita espaço.

Apesar de só cobrir o Silas, o Mangaratiba e o Domingos na hora do almoço (de 12 as 14h), ele se deleita quando está na portaria. Parece um capitão em sua nave espacial.

‘ O Silas uma vez me emprestou um filme que deixou uma sombra na minha alma ao mesmo tempo que jogou uma lanterna no meu ofício. Não me lembro qual era o nome, mas a história ficou. Imagine você, um grupo de bacanas dá uma festança em sua casa, mas ninguém consegue sair! Por dias, as pessoas ficam presas na casa. Não lembro o nome do filme mas eu chamaria de “A falta que um porteiro faz!” Gosto de pensar em mim como alguém que abre e flecha os fluxos.”

Mais do que tudo na vida, Junim apreciava o entra e sai, entusiasmava-se com o crochê das vidas. Moradores, entregadores e visitas, puxava assunto e escutava delicadamente a todos. 

“Tá indo pra onde? Voltando da onde?” Inquiria o tom do sotaque cearense envolvendo as palavras que realmente dizia:” Boa Tarde Dona Amélia. Vai na Igreja? O Seu Valdeci, como é que é? Deixou algum pão na padaria? Fala campeão, só nas menininhas né? ééé”. 

Apesar de almejar o cargo de porteiro, Junim não faz pouco de seu ofício de Faz-tudo. Inclusive, aproveita sua posição para colher o máximo de informação que pode. Quando é porteiro, consegue saber para qual apartamento a entrega vai só de olhar no olho do entregador. (Claro que o horário da entrega também auxilia nessa adivinhação.) Quando é Faz-Tudo aproveita para conhecer a tubulação de cada apto, o sistema de fiação, até o transito do gás. Quando tem a chance de entrar em um apto, seus olhos bebem o espaço numa completa varredura que automaticamente uploada para sua mente de estimados 150 Terabytes.

                                                                                         Mangaratiba

O Mangaratiba mora lá em Mangaratiba! Se despenca de trem todo dia as 5 da manhã pra chegar as 10h no edifício do Andaraí e ser um velhinho gente fina. Mangaratiba ri e chora ao mesmo tempo, é uma pessoa especial. Ninguém sabe o seu nome, ninguém sabe como ele foi parar ali, rumores sugerem que ele sempre esteve. 

Além de ser uma figura cândida, meio atabalhoado, e sempre carinhoso em seu jeito de falar, o Manga era ainda Pai-de-Santo, iniciado nos mistérios de Ifá. (O sistema divinatório das culturas Africanas.) E, por isso, toda manhã consultava seus Búzios antes de sair parar trabalhar. Naquela manhã fria de Junho, ele tentou se consultar, mas durante três vezes, o jogo se recusou a oferecer-lhe resposta. Mangaratiba foi saculejante no trem tentando fazer respostas da não-resposta, jogando Búzios imaginário com os próprios ossos.

                                                    Domingos

Negro, 50 anos, cabeça quadrada como um Minecraft  adornado por um belíssimo cabelo enroladinho direto das capas dos discos de charme que ouvia na juventude.
É uma daquelas raras pessoas que tem um rosto que combina com seu nome, só que não se chama Domingos, seu nome é Abel. É chamado na portaria do edifício do Andaraí de Domingos porque só trabalha aos domingos.
Durante os outros dias da semana, o que ele faz é mistério até para ele mesmo.


                                                           Gabriel Pacheco

Síndico do Edifício do Andaraí. Branco de camisa polo.

                                              *

Aquela madrugada soltava vapores de cores incomuns. Silas chegava no edifício para cumprir o seu turno, mas tomou um balde de agua fria bem no espírito ao pisar no hall do prédio e encontrar o Domingos na portaria em plena quarta! O péssimo agouro era só a ponta de um iceberg que lhe gelaria a espinhela.
O síndico Gabriel Pacheco parecia mergulhado em palidez, e sua brancura fantasmagórica se intensificava a ponto de cheirar a requeijão. Junim, sentado de cabeça baixa no sofá do Hall sem o uniforme parecia arrasado. De soslaio revelou enormes olheiras sob os olhos gulosos que o encararam como a porta de um longo buraco por onde Silas escorregaria em espiral.

O Gabriel depois de um tempo tomou a palavra como quem toma um gole da cachaça mais azeda:


- mataram o Mangaratiba!


Imediatamente suas pernas amoleceram, e ele esqueceu aonde estava. Só podia ouvir a lembrança da risada e do jeito de olhar do velho Mangaratiba.  Quando chegava alguma entrega, o Mangaratiba divertia pelo estilo direto e reto. Se era delivery de bolo, ele interfonava para o apto, mau esperava a pessoa dizer “alo”, e mandava na lata: “Bolo!” E desligava imediatamente. Também não esperava a confirmação do morador, ou o aviso de que estava descendo. A vida é curta, e quem deixaria um bolo esperando? Sim, a vida é curta. Era esse o subtexto que o Mangaratiba atrelava ao seus abruptos avisos. Curta e  tão grossa que agora apagava uma vida daquela assim...


- Como?

- Tiro. Atiraram nele bem aqui na portaria. (Gabriel aponta para o lugar onde está Domingos. Domingos vomita no chão.)

- O que? Mas o vidro que dá pra rua não tá nem arranhado!

- Também não entendemos. Parece que acertaram bem enquanto a porta tava aberta . . .

- Mas . . mas

- Serviço de profissional . .. (Acrescentou Junim cabisbaixo.)

- Olha, Silas, nós vamos redobrar a segurança. A polícia foi avisada, vai fazer rondas no entorno. Cuidado redobrado quando for abrir o portão. Enviamos um comunicado aos moradores, eles vão tentar entrar e sair mais rapidamente e sem abrir tanto assim a porta . Tente ficar calmo 

- Tá, mas quem matou o Mangaratiba? Quem teria motivo para eliminar um coroa tão boa gente? (chora copiosamente.) Porra Manga, que saudades já! E o corpo dele, foi pra onde?

- Advinha !


terça-feira, 20 de abril de 2021

saudações***, ou eles se saúdam, eles se saúdam e se vão, e se vão . . .

(Um sujeito de fones de ouvido está sentado num banco de um parque. Outro sujeito usando fones vem descendo, o reconhece e o saúda) :


Outro sujeito de fones – e ai, Rodrigo! 

(como o primeiro sujeito de fones não esboça reação, Outro sujeito encabulado diz, como para si mesmo): 

Não escutou. Tá ouvindo música*.        

(E segue sua vida, quando encontra outro banco a certa distancia, senta distraído. Entrando na linha de visão do primeiro sujeito de fones que estava distraído até o momento. Este então, reconhece a presença do outro sujeito e o saúda:)


Sujeito de fones – e ai, Rodrigo! (Como o outro sujeito de fones não esboça reação, O sujeito de fones encabulado diz, como para si mesmo)

Não escutou. Tá ouvindo música**.

( E segue sua vida, ouvindo sua música, olhando pro céu.)


Uma Voz do céu – e ai, Rodrigos! 


(nenhum dos dois escuta.)

* -“Stricken Arise” – Morbid Angel

** -“Embrazando” -  Igor Kannario




*** - Este conto foi recolhido do Livro dos Ensinamentos Místicos do Guru Govinda Baghavada Cleyton conhecido como o Mahatma de Manhathan, "As Horas Enlammaçadas." Editora Trevinhas, 2017.


sexta-feira, 9 de abril de 2021

A música da diáspora (primeiro movimento.)





Partindo de uma leitura complementar de dois textos sobre música, pretendo encaminhar uma reflexão a respeito das origens negras da música contemporânea.  Evidenciando que a maior parte dos gêneros musicais compreendidos como pop, ou contemporâneos tem origens africanas, e contribuições não só físicas como filosóficas da perspectiva do homem escravizado, tomado pelos sentimentos de inadequação, banzo ou nostalgia . Analisando paralelamente o caso dos Estados Unidos e o do Brasil, esta fala se articulará como um acompanhamento do percurso histórico das diferentes manifestações da cultura musical de origem negra, e das constantes resistências: exílio, desqualificação, desprezo e aglutinação a que estas manifestações tem enfrentado.

Para pensarmos o caso internacional, partiremos do que é proposto no livro “Rock -  O Grito e o Mito” de Roberto Muggiati de 1971. No qual, no capítulo sobre o grito, e sobre sua importância no rock, o jornalista musical precisou se referir ao blues. E destacar artistas como Robert Johnson, Bessie Smith e Mahalia Jackson, cujas composições e interpretações expressam um sentimento de perturbação e insatisfação descomunal, futuramente característico de toda arte contemporânea. Tamanha foi a intensidade deste sentimento, que deu nome ao gênero musical: Blues, a tristeza em português.(semelhante ao caso do Lundú, uma forma primordial de samba do século XIX e início do XX, normalmente de cunho sarcástico, e que também significa : mau humor.) Contemporaneamente, é comum que se saiba que o nome do gênero Blues advém do sentimento Tristeza, mas não é comum que se pergunte antes: qual seria a causa deste sentimento de tristeza? Para Roberto Muggiati, a origem desta tristeza estaria na diáspora ,separação forçada do homem negro de sua terra original. E o grito, tão característico primeiro do blues, e posteriormente do rock, seria a resposta `a violência exercida contra o povo negro. Portanto, nos anos 70, neste ensaio, o jornalista brasileiro Roberto Muggiati afirmou:” o rock nasceu de um grito, o grito do escravo negro ao pisar em sua nova terra, a América. Esses berros de estranha entonação eram atividades comuns entre os nativos da África Ocidental. O primeiro grito negro cortou os céus americanos como uma espécie de sonar, talvez a única maneira de fazer um reconhecimento novo e hostil que o cercava. A medida em que o escravo se afundava na cultura local- representada no plano musical pela tradição europeia – o grito ia se alterando, assumindo novas formas. Servia de suporte as canções de trabalho e as cantigas de escárnio, aos cantos religiosos, aos spirituals, a gospel songs e as canções de menestréis. Em torno do berro iam se aglomerando novos sistemas sonoros, mas ele permanecia a estrutura primeira, o núcleo da expressão musical negra” .Em seguida, o autor traça um esquema evolutivo da expressividade musical negra ao longo da história:


Grito   >   Blues  >    Rithm and Blues>    Rock and Roll   >    Rock.

             (jazz)                     (Hip-Hop/Funk/

                                              Charme  > Miami Bass  >  Funk Carioca) *

Acrescentados por mim ao esquema de Muggiati, para estabelecer a ponte entre o caso dos Estados Unidos, e o caso do Brasil.


O caso do Brasil, como sempre, é mais delicado. O processo de escravidão aqui teve suas peculiaridades, e a repercussão musical destas violências é explicada em “A presença africana na música popular brasileira” do grande pesquisador de africanidades no Brasil, Nei Lopes. Neste texto, Nei fornece uma base para que se trace semelhante esquema sobre a linha evolutiva da música africana na música popular brasileira. Evidenciando como matrizes, as culturas de duas civilizações africanas: as culturas do povo do Congo, e as culturas do povo Nagô, ou Iorubá. Os povos que mais foram raptados para sujeição a trabalho escravo no Brasil. Tendo, segundo Lopes, os povos do Congo, e sua cultura se difundido mais pela região sudeste, o que teria dado origem ao samba, enquanto os Iorubá-Nagos  teriam difundido sua cultura mais pela região nordeste, majoritariamente por meio das religiões, dando origem a outros gêneros como as congadas, o maracatu, o bloco-afro, e o que se conhece como Axé Music.

O axé music é a condensação mercadológica de elementos estéticos reclamados pelos movimentos de valorização da cultura negra. Impulsionados pelo que representou a popularização da cultura reggae da América Central(e o rastafarianismo que via na Etiópia sua terra sagrada), vários grupos de música com a proposta política de afirmar artisticamente a representação negra foram se voltar para este legado africano , e assim o Axé dá seus primeiros passos, até a total aglutinação pelo mainstream, esvaziando-o de seus significado, e postura de resistência africana. O mesmo acontece com o samba, por meio da capitalização do carnaval, corporificada pela figura das escolas de samba, e manifesta nos sambas enredo – que muitas vezes tratam de assuntos encomendados por grandes empresas, portanto são desprovidos de autenticidade, ou de real necessidade . Além de constituírem canções efêmeras, a serem esquecidas com o fim do carnaval.

Entretanto, até que uma manifestação musical negra seja aceita, e em seguida aglutinada ao seio mercadológico (ou senso estético) do atual estado da sociedade industrial, ela sofrerá muita resistência. São muitos os mecanismos de proteção que a cultura branca tenta usar contra a influencia das culturas de África. Se recorrermos a manifestações religiosas ,veremos os pensamentos e atos de intolerância cristã, que além de disseminar ódio, e incompreensão, fazem com que uma parte considerável da população negra renegue, ou abomine as culturas de matrizes africanas (Tenham medo de suas próprias raízes.) . Se recorrermos a exemplos históricos de gêneros musicais poderemos citar uma série de “danças proibidas”: maxixe, lambada,funk etc. A proibição oficial de determinados gêneros, característicos de culturas africanas desenvolveu uma ligação da cultura negra, com a cultura da marginalidade (jazz, rap, samba, funk), ou a cultura periférica (funk carioca, slam poetry), ou a contra-cultura (rock, capoeira), ou a sub-cultura . Todas denominações delicadas por evidenciar a não oficialidade de ser negro.

Nos dias de hoje, o funk carioca é o alvo mais evidente. Tanto de uma blindagem intelectual da crítica, da academia, da escola, da polícia e de uma mentalidade aristocrática, quanto da aglutinação violenta das proposições estéticas inauguradas pelo tamborzão eletrônico. A constante pasteurização dos artistas que surgem com alguma autenticidade é a rota para o sucesso no mercado musical de hoje. Depois que consegue alguma visualização através de uma música autentica, o artista de hoje é moldado segundo os requisitos musicais, visuais e ideológicos vigentes. A indústria lhe apaga qualquer viço de originalidade, e tenta aparar os elementos diferenciais, adequando-os ao que o mercado deseja por meio da produção de um hit. No mundo do funk, esse hit geralmente segue a linha do Funk melódico, ou Funk Melody . Que é por si só, um gênero esbranquiçado de funk. No funk melody, toda a agressividade, insatisfação, senso de humor, letras chocantes, e tom contestatório, característicos do funk carioca são dissolvidos e transformados em romance. O funk assim,  se cala para as injustiças sociais, não retrata mais a vida na favela, não trás mais para o asfalto expressões idiomáticas do morro, e não simula a batida de um tambor africano . No lugar disso, adere ao discurso dominante do Status Quo: O amor, a conquista, a sedução . Abrindo mão, desta maneira, de particularidades que o caracterizam em nome de uma lógica generalizante. E se entregando a um embranquecimento mercadológico.

Portanto, reside no funk carioca, gênero brasileiro, negro, eletrônico e periférico, a
potencia transformadora e revolucionária da manifestação africana na música popular brasileira. E prova disto é, a enorme resistência que este gênero desperta ainda hoje , assim como o crescente interesse do mercado musical neste gênero, e na aglutinação destes artistas. Outra prova visível da importância do funk carioca para a história da música afrodiaspórica é a quantidade de artistas negros que produzem, e consomem o gênero, e politicamente a situação de não oficialidade e entrosamento que o gênero musical desenvolveu com o poder paralelo vigente nas comunidades do país.  


Proposta de esquema evolutivo da expressividade musical negra no Brasil:


Grito > Cantiga >  Lundú e Modinha > Maxixe/ Danças de Salão> Samba

&


Grito >  Congadas e Afoxés > Maracatu e Blocos Afro >  Manguebeat e Axé 

& no caso do funk carioca:


Grito   >   Blues  >    Rithm and Blues>    Rock and Roll   >    Rock.

             (jazz)                     (Hip-Hop/Funk/

                                              Charme  > Miami Bass  >  Funk Carioca




BIBLIOGRAFIA:  “ROCK, O GRITO E O MITO – A musica pop como forma de comunicação e contracultura.” Muggiati, Roberto. 1973, Vozes do mundo moderno.

A PRESENÇA AFRICANA NA MUSICA POPULAR BRASILEIRA” Lopes, Nei. In Revista: Espaço Acadêmico, número 50. Julho/2005. 

Ilustração - " Now`s The Time" 1985, Michel Basquiat


domingo, 1 de março de 2020

O castelo, o livro chave de Franz Kafka

O castelo todo enterrado no crepúsculo deixa o protagonista entrever sua silhueta indiferente. Da mesma maneira que, Kafka nos deixa vislumbrar a história em seu desenrolar cinematográfico e, por isso, sombrio, o texto nos oferece um mundo por partes. Do protagonista, desta vez, temos apenas parte de seu nome: K. Como uma silhueta, um vulto, uma aparição na incompletude.  Não sabemos bem quem ele é, podemos apenas calcular quem ele pode ser. Pode ser Joseph K, protagonista de O processo continuando seu calvário burocrático, pode ser uma referencia ao próprio nome do autor, ou os dois ao mesmo tempo?
Em uma anotação de 1922 a respeito de O castelo Kafka disse:
“alguns livros funcionam como uma chave para as salas desconhecidas do nosso próprio castelo.”
Reflexão que nos abre o olho para o papel de K como agente externo da trama. O enigmático protagonista atua exclusivamente como um estrangeiro, forasteiro bárbaro que não conhece, nem consegue se adequar `as leis vigentes na aldeia que circunda o castelo. Na maior parte da narrativa, o que K faz é destoar, e agir como um vírus introduzido no interior de um sistema. O que talvez seja uma das mais fortes características da escrita de Franz Kafka ; a inadequação.
O castelo, como O processo tecem as teias de uma malha burocrática regida pelo autoritarismo despropositado. Os dois protagonistas, como chaves, se introduzem no seio desse sistema automatizado e reificado, para exibirem seu interior oco. Podemos entender O castelo como romance chave a partir de seu poder de síntese dos temas da obra literária de Franz Kafka .
Kafka tem um jeito estranho de escrever, abundam paradoxos, transgressões lógicas, e uma maneira muito visual de pensamento vivaz. É comum encontrarmos cenas extravagantes, sem muito detalhamento de suas causas lógicas. Ou seja, o mundo ali ou é outro, ou é regido por leis desconhecidas, ou enigmáticas. Se pensarmos por exemplo em A metamorfose, nunca nos é explicado o motivo, ou causa que transformou Gregor Samsa em um inseto gigante . Não se tratando de uma questão de magia, nem de tecnologia ( comuns em textos de Fantasia e Ficção Científica.) A narrativa de O castelo avança na força do paradoxal, ou no passo das incertezas. Não sabemos se K. é mesmo um agrimensor contratado, ou se foi a situação que o forçou a improvisar um posto para ser aceito na sociedade. Não sabemos o que foi K fazer nesta aldeia com castelo. Não sabemos suas motivações anteriores, nenhum objetivo que não seja ser aceito pela sociedade funcional da aldeia do castelo. Sociedade esta que é movimentada por um tonteante jogo de distribuição de poder, que como em O processo, infernizam e atordoam protagonista e leitor. Nenhuma aliança pode ser comprovada de modo claro em relação a K. Todos os membros daquela sociedade parecem receosos e escorregadios.  É uma narrativa porosa,  de vácuos que se insinuam constantemente. Saber que discurso usar ,e com quem, saber quando não admitir e saber quando se submeter, parecem as especialidades do protagonista, que mesmo com todo traquejo social malogra e se perde em seus enredos.
Um resumo tosco do livro poderia ser esse: sujeito que para alcançar uma miragem tem que se submeter a lidar com diversas autoridades, que de modo dúbio e paradoxal lhe proporcionam um conjunto de vivencias. No entanto, essa miragem, essa imagem tremula de um castelo, essa miração impenetrável, apesar de intocável, exerce seu poder por meio de figuras de autoridade. O que serve ,então, como ameaça ao longo de todo livro é a virtualidade do poder. Um poder virtual que emana de um castelo inalcançável, e que se faz sentir pelos seus representantes reais.
O castelo, misteriosa presença ausente que se insinua para dentro e para fora da historia. Sensual como uma parte do corpo que se revela e em seguida some. Ao desejo do protagonista de tocar o real do castelo, os camponeses reagem com desconfiança, medo e até chamam o ímpeto de egoísmo. Ao mesmo tempo, jamais o narrador nos explica de que maneira K pretende resolver sua situação de imigrante ilegal uma vez que sua linha do horizonte for alcançada. Também não dá nenhum indício de que ele possa desistir de sua meta.
O livro apesar de não ter final, não é desprovido de um desfecho enigmático : “falava com esforço, era preciso se esforçar para entende-la, mas o que ela disse” ...  ao final da leitura, fica a especulação de que este livro seja sobre laços sociais, sobre submissão e amor e sobre institucionalização do poder. Uma leitura labiríntica, recheada com imagens expressionistas colocações paradoxais como por exemplo : “ o que teria me induzido a vir, que não o desejo de ficar”, e o constante erguer de aporias, como a construção de um prédio de espera, onde as pessoas ficariam apenas aguardando para entrar em outro lugar. Ou, como no trecho a seguir :
“impusera que as pessoas, que primeiro haviam esperado simplesmente num corredor, depois na escada, em seguida na soleira, mais tarde no balcão de bebidas, fossem finalmente empurradas para a rua.”

sexta-feira, 5 de junho de 2015

eu desejo que voce se tornará um rinoceronte 
eu desejo que voce se tornará um carro-palhaço,um portão-palhaço,uma árvore-palhaço na terra dos dinossauros!!

eu desejo que voce vá pra terra das plantas-laser! 
eu desejo que nós 2 viremos tiranossauros na terra do chulé!
eu desejo que voce fique com cabelo de fogo!
eu desejo que voce fique com cabelo de planta!

eu desejo que voce tenha medo de música!Mas só quando eu cantar: lara laiá!

eu desejo que voce vire uma estrela!


segunda-feira, 1 de junho de 2015

Head on a spike

My head on a spike for you !


Spelled the cofee on
the floor.
Tua mãe gosta de dançar.
O sol bate no topo

dos prédios espalhando
vermelhidão cor de
abóbora pelas paredes
da abóbada menstruante.

{Gente bonita em lugares bonitos.}

Alguma coisa nessas tuas fotos
me chama pelo apelido, e o teu
sorriso nelas é um tiro de ar
comprimido.




{Gente feia em lugares bonitos}

+1 balada mórbida sobre a
tempestade cósmica?
+1balada antipática
de fala melodramática?
+1 balada que grita de dor
das mordidas da vida?
+1 balada dessas
sem incessáveis asas?

Note que : quando

a noite cai com
a chuva e enche
qual cacho de uva
a boca do riacho
        eu quacho .

{Gente malhada na piscina da felicidade jogando água pra fora.}

My head on a spike compreendendo crime passional.
My head on the wagon wheels,
My head nos centros de umbandaime
My mind on the tracks
My mind on deeserts

{Gente saudável urinando ouro na piscina da felicidade.}

Corteje ela,
a moréia com eletrodos.
Se ensopando na bacia
de águas frescas da mente.
-    

            ridículos mecanismos de captura
não serão a cura pro que
te tortura. Pra que tanto teto?
Pra que tanto tantra? Desastrosas
tentativas de gravura.


                                                                                                     Note que : quando

a noite cai com
a chuva e enche
qual cacho de uva
a boca do riacho
        

                                           
                                         eu quacho .

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Docinho de uva


Uma barraca móvel de doces. Andei em torno de vinte minutos, da minha casa até lá. Pelo doce de uva. Era o segundo dia que eu andava até lá, exclusivamente pelo doce de uva. Porque é bem bom. Mas em nenhum dos dois dias tinha sobrado nenhum . Porque é bem bom.
Hoje é o segundo dia do ano. O outro dia que eu tinha tentado era o penúltimo dia do ano passado. A moça disse que o de uva não tinha mais não. Mas do de queijo ainda tinha um . Eu comprei mas não comi. Está guardado para dar de presente. Comi um casadinho.
Hoje não tem o de uva . Da outra vez eu levei um casadinho para compensar a falta do de uva. E era bastante bem feito, até para um docinho clássico comum. Fiquei procurando o substituto perfeito . Vi que tinha até de nozes, talvez fosse uma. Não tinha o de uva , não tinha o de queijo, e a moça que normalmente atendia na barraca não estava lá. Confiando na qualidade do casadinho resolvi leva-lo.
-       me vê um casadinho ,por favor?  
Pergunto ao senhor que maneja a barraca.
-        . . .
-       me vê um casadinho, por favor?
-       Casadinho.
E o senhorzinho me passa o doce ensacado e com um guardanapinho. Em troca de uma nota de dois .
-       O de uva acabou, né?
-        . . .
-       O de uva não tem né?
-       O de uva eu nem fiz! Eu comprei umas uvas mas elas tinham caroço, aí achei melhor nem fazer.
-       Eu não me incomodaria.
-       Ah mas eu achei melhor não fazer. Porque eu não quero que o pessoal diga que eu estou enganando, você  está me entendendo? Digo que o doce é sem caroço e vendo com caroço.
-       Mas o pessoal reclama disso?
-       Olha, moço, eu sempre trabalhei com a uva sem caroço. Se eu boto uma uva caroçuda aqui, vão dizer que decaiu o nível. Você está me entendendo agora? O problema do doce de uva é que o único lugar que vende uva que presta, é no horti-frutti. Uva boa, uva sem caroço, limpinha, entendeu? A uva, quando você lava, ela tem aquelas marcas, aquelas impurezas que aquilo ali sai tudo. As dos outros lugares são tudo porcaria!
-       Ah é ?
-       Uva pro doce tem que ser: sem caroço, limpinha, e verdinha. Eu comprei essas uvas pra fazer simpatia. E agora  com a festa de Reis, talvez ainda de pra usar .Mas não dá pra fazer os doces com elas não .  Esses doces aqui (bate na bancada superior da barraca, onde estão : doces de leite condensado, brigadeiros , casadinhos, doces de nozes e algumas balas de coco.)  são tudo de hoje! Agora com este calor não tá saindo quase doce .
-       Ta muito quente.
-       É. Antigamente eu pingando de suor aqui vendia doce o dia inteiro. Agora, vê aqui (aponta os doces da bancada inferior da barraca, que são : brigadeiros, casadinhos e doces de leite condensado .) esses aqui são de ontem . (Pega um brigadeiro ensacado e um guardanapinho) esse daqui é cortesia. Pode comer.
-       Oh, brigado . (abrindo e comendo.)
-       Olha ai. Não ta bom?
-       Bem bom.
-       Bem bom. Não disse. Esse daí é de três dias atrás! Esse docinho aguenta sete dias. E ainda garanto pra você que é melhor que o da Colombo! Não to dizendo? Esses dias eu fui lá na Colombo né, até pra ver né, você ta me entendendo?, como é que andam os doces.
-       .  . . e ai? . . .
-       Umas miserinhas de doce, e vai pagar no mínimo seis reais. O moço, uma coisa que comigo não tem é enganação . Não engano meus clientes. Eu vendo doce.  Eu vendo alegria . Eu vendo festa!
Não pode ter nada de ruim junto não . A minha filosofia é essa, que nos primeiros sete, seis dias do ano você tem que fazer coisas boas . Você ta me entendendo? Ajudar quem você puder ajudar. Pensar em coisas boas . Coisas positivas. Fazer o seu trabalho que é pra embalar,  e seguir o ano todo assim. Pra que enganar o cliente? Ah não. Não gosto de ser enganado e por isso não engano. Se me enganar também, vai ser uma vez só!
-       é  . . .
-       essa barraca aqui, o moço, tem 34 anos de licença! Eu gosto de ter credibilidade.  Eu tenho cliente que me paga quatrocentos reais andiantado ! – “Pumba. Avelino, entrega lá na minha casa” o cento de doce! Eu vou. Eu vou. Você já viu isso?? Heim?
-       ...não . . .
-       Entrego doce na casa. Esses dias mesmo veio uma moça pedir pro aniversário dela . Eu descobri que a moça era filha de uma cliente antiga! Passava aqui pequena. Ih, muita gente compra doce aqui comigo. É que agora eu não tenho ficado mais aqui . Quem fica mais é a menina . . . mas rapaz, com ela . . . eu perdi muita venda.
-        . . .é mesmo? . . .
-       Perdi. É porque antigamente tinha cliente que pedia em casa, aí os garotos, o pessoal que trabalha aí, né? Eles iam levar até a casa da senhora, e ela toda vez deixava dez, quinze reais pra quem fizesse a entrega ! Então o pessoal adorava ir. Eu não gostava de ir justamente pra dar chance, né. Agora essa menina não. Ela não faz entrega .
-        . . .ih . . .
-        Pois é. Eu podia falar pra ela : - “Olha, não vai dar mais pra ficar com você não, tá, té logo.”  Que eu não tenho nenhuma dívida com ela. Tá tudo pago. No máximo eu ia dar o dinheiro da passagem, pra ela voltar pra casa. Mas eu não faço isso porque a gente nunca sabe o dia de amanhã, você está me entendendo?
-        . . . pois é . . .
-       E eu gosto de pagar adiantado . Sabe porque? Que é pra não chegar no fim da semana ter que pagar trezentos reais, prefiro pagar logo no começo do turno aqui. Pumba . Você nunca vai ver gente aqui parada : - “ah, to esperando o Avelino me pagar.”
-        . . . ta certo . . .
-       Eu garanto que não tem doce melhor do que o meu no Rio de Janeiro. Muita gente compra doce aqui comigo . Eu gosto de ter credibilidade. É senhora, criança, advogado, ministro, todo mundo comprando doce comigo aqui. Você lembra do coroa que trabalhava aqui? (encarando desafiadoramente.) Não lembra, né? Coroa! Mais velho do que eu. O cara tinha duas faculdades! Era filosofia e . . . era filosofia . . .e algum outro negócio lá, acho que matemática! Duas faculdades, o coroa , setenta e poucos anos , mais velho do que eu, trabalhando aqui de uma as seis aqui na barraca . E não era pelo dinheiro não. Não era pelo dinheiro não, porque ele era professor. Professor universitário .Botava dois alunos dentro de casa, e pronto, dava pra tirar o dele.
E mais . O cara ainda é primo de ministro! é, do ministro Sepúlveda Pertence! Ou seja, não era pelo dinheiro que ele trabalhou aqui. Foi sabe pra que? Pra me ajudar!
-       . .. caramba!
-       Pois é. Agora essa menina diminuiu muito as minhas vendas . . . mas só ela e uma outra sabem fazer esse tipo de cocada que eu vendo. Porque é um tipo de doce especial. Que tinha uma família que sabia fazer , e ganhou tanto dinheiro que comprou até, sabe o que? Yate em Muriqui!!
-       . . . po . . .
-       é! Mas ela não é dessa família não, só trabalhou na casa da família e aprendeu. Aí se eu mando ela embora, vou ter que ir lá no morro buscar a cocada. Aí vai que os bandidos me entendem mal, e pensam que eu sou viciado. Ou então que eu sou da polícia e estou lá marcando a deles. Agora, eu tinha combinado com ela que eu ia precisar de cocada . Marquei com ela aqui ontem . Ela me disse que achou que eu não viria porque é ano novo, essas coisas.
Hoje tem a cerimonia dos capuchinhos, que a coqueluche lá é uma simpatia justamente com cocada. Primeira sexta feira do ano e eu perdi! Mas, não faz mal . Não da pra reclamar não, o moço. Afinal o que eu vendo é doce !
-       ta certo, seu Avelino. O doce de uva volta quando?
-       Vai passar aqui amanhã?
-       Passo.
-       Então pode vir que vai ter .