segunda-feira, 9 de março de 2009

Raul


VÁ E DIGA AO MUNDO QUE VOCÊ ESTÁ CERTO!

As flores de Dona Damiana



As estrelas cadentes,todas elas quando morriam, mergulhavam com violência lúdica nos jardins de Dona Damiana

Tornando suas flores realmente, Flores de Dona Damiana.

As mais belas e cintilantes exibidoras do brilho mais especial já visto em toda a história da botânica.

Dona Damiana, senhora gorda e risonha, esposa de Seu Walmir magro e carrancudo, que os anos rangendo o pequeno portão de ferro de sua casa pela manhã, com um saco de pão nas mãos trêmulas, somadas as bolas de futebol que caiam na casa dele e voltavam furadas, e mais os anos e anos de morador da mesma casa em Vigário Geral, adicionaram o Seu a seu nome: Walmir.

O casal tinha idades de fato muito avançadas, e embora nenhum dos dois se lembrasse delas muito bem, alguns chatos diziam que somadas as duas idades daria algo em torno de duzentos anos.

Duzentos anos tinham juntos ,mesmo estando juntos por 43.

A paciência de Dona Damiana era a alma daquele casal que de tão clássico, ao passar nas ruas sentia-se vontade de admirar o clima por eles carregado, alguns juravam até ouvir um sambinha antigo ao fundo, outros realmente paravam suas conversas para admirá-los e os que continuavam conversando já nem eram mais ouvidos e sinceramente só falavam por falar, pois nem os mais insensíveis eram capazes de não prestar atenção em algo tão charmoso.

Seu Walmir nunca quis ser ele mesmo, mas já que era, resolvera apenas sentar e esperar até que acabasse... mas por algum motivo que para todo o universo era desconhecido,Dona Damiana quis acompanha-lo.

Nos primeiros anos juntos, Walmir a enxergava como uma espécie de luz para sua companhia mas nos últimos anos , o único gozo em sua vida era o sono e só conseguia dormir de luz bem apagada., e o excesso de luz em sua esposa só faziam machucar seu bom senso.

Aquela era uma noite comum, os calos de Seu Walmir pareciam mover-se por vontade própria, espichando e contraindo, numa brincadeira que só os calos achavam graça, Seu Walmir não.

Para as flores aquela não era uma noite ignóbil, era novembro, e elas esperavam a chegada das estrelas, Seu Walmir não.

O velho virou-se na cama, da esquerda para a direita como se lá (na direita) fosse encontrar com seu sono, fica uns segundos e faz o caminho inverso, o sono deveria ter mudado de lugar, pois não o achou.

Nesta jornada na cama ,acaba percebendo que já é bem tarde e sua companheira não o acompanha na cama , fato que não seria perturbador se não fosse novembro.

Abre seus olhos tanto quanto o sono permite, só poderia comprovar a desgraça se, se levantasse e fosse até o calendário, e sentia forte o desejo de ir até o calendário na porta da geladeira, porém seu corpo não parecia se importar do mesmo jeito, tanto que não se levantou.

Seu Walmir contorce a face numa expressão de insatisfação contra a desobediência de seu corpo.

Novembro é que não poderia ser, para muitos dos outros aposentados, tanto faria qual dos 12 meses era, mas para Seu Walmir sim.

Sempre em novembro não podia dormir, já que as estrelas cadentes ,todas elas morriam e mergulhavam com uma violência irritante nos jardins de Dona Damiana , já que os astros a achavam uma dama especial , A Dama de luz da Terra, e usavam seu jardim como o leito final de estrelas.

As estrelas boas caiam ainda radiantes por entre as Begônias, escorregando com um frescor prateado em volta dos caules até repousarem para sempre nos braços acolhedores das raízes.

O último brilho das estrelas boas em volta das begônias, alguns pretos diziam que já foi motivo de música, e que os poucos que viram, ficaram apaixonados para sempre, quando não loucos de amor ,Seu Walmir não.

Quanto às estrelas ruins, essas caiam feito pedrinhas vazias e apagadas, e ao tocar no chão do jardim eram arrastadas por ervas-daninhas para debaixo da terra com a eficácia de quem quer escondê-las.

- Damiana!

Seu Walmir investiu no vácuo, mas não obteve resposta ou sinal parecido.

Já estava quase na hora, a mulher com certeza havia de estar se balançando na varanda esperando a visita das estrelas, que carregariam sua insônia... mais uma noite de insônia não poderia agüentar, luzes e mais luzes uma pirotecnia dos diabos ...

Um segundo, e todas as lembranças de Seu Walmir sobre defuntos astrais sendo despejados na sua casa por todos esses anos, começaram a aflorar no peito, e ponteagudamente furar sua alma.

-Damiana!!

Desta vez com o ódio de quem senta numa cama e berra com seus pulmões antigos fumegantes como novos, renovados pelo ódio, ódio guardado com amor por duzentos anos.

-Damiana!!!

-A mulher simplesmente não vem-

TINHA QUE FAZER ALGUMA COISA!

TINHA QUE PARAR ESSA HISTÓRIA!

Um barulho que onomatopéia alguma seria capaz de traduzir se irrompe quando Seu Walmir se levanta da cama, sua mente já não existe, e em seu último raciocínio lógico só fora capaz de fazer o cálculo: “Se as estrelas vêm parar aqui por causa de Damiana, acabando com Damiana eu acabo com as estrelas”.

Quem não sabia o que é loucura obsessiva, logo tiraria qualquer dúvida ao encarar os olhos roxos e incontrolados de Seu Walmir.

Ele sai do quarto, era noite fria, a porta da sala ilustrava a imagem que Seu Walmir já decorara; a silhueta de Damiana sentada na grande cadeira de balanço de frente para o jardim. Caminha através da sala ampla com pisos de madeira que...rangem.

Alcança a porta, encima da cômoda, repousava uma boneca de porcelana com um laço verde-oliva na cabeça, o louco desamarra-o e a boneca nem suspeita do objetivo da ação.

Cada passo obstinado do idoso fazia a antiga estrutura da casa compartilhar do Parkinson que tinha na mão esquerda, que segurava a tal fita verde-oliva.

Walmir pára atrás de sua esposa (e esta nem se arrepia) com a coluna ereta de quem se esqueceu de todo o peso dos últimos duzentos anos, suas mãos tremiam, mas a obstinação e desejo eram maiores do que tudo naquele segundo de vermelhidão

Em contra partida... Dona Damiana era tão linda como na primeira manhã de Sol rascante em que se viram e se falaram, uma lágrima cai, e a primeira estrela também, e enquanto o preto do céu era ferozmente rasgado com a força de trinta cachoeiras, em uma só gota-linha, Seu Walmir faz um movimento rápido e veste a fita verde em torno do pescoço da esposa ,a boneca de porcelana cai e se quebra em cacos.

Seu Walmir aperta-lhe a goela com a voracidade de quem morde um bife suculento, os olhos da senhora, que fitavam o céu e brilhavam de encanto e felicidade, pois era uma estrela boa, iam se virando para algum lugar mais alto que o céu, iam para a casa da angústia, contração e desespero.

As estrelas não paravam de cair, algumas boas, outras ruins, todas morrendo no jardim, todas irritando Seu Walmir.

Seu ódio lhe dava razão e tesão por sua arte de enforcar, e debaixo da chuva de estrelas , ele se sentia aflito mas certo do que estava fazendo e tanta certeza e precisão, o faziam babar com loucura sólida, todo o corpo tenso de força chegava a dar tremeliques de loucura líquida.

Algumas estrelas se sacrificavam para salvar Damiana, mas quanto mais estrelas caiam, mais veias se estouravam.

Depois de algum tempo, as estrelas pararam de cair, e passados dois minutos de respiração ofegante em loucura gasosa,Seu Walmir apenas largou a fita , fazendo com que o corpo celeste morto de sua esposa caísse brilhante encima das Begônias...Seu Walmir depois de algumas horas ,finalmente conseguiu dormir bem e no escuro, fora carregado para debaixo da terra por ervas daninhas...era uma estrela ruim.

FIM.