Para pensarmos o caso internacional, partiremos do que é proposto no livro “Rock - O Grito e o Mito” de Roberto Muggiati de 1971. No qual, no capítulo sobre o grito, e sobre sua importância no rock, o jornalista musical precisou se referir ao blues. E destacar artistas como Robert Johnson, Bessie Smith e Mahalia Jackson, cujas composições e interpretações expressam um sentimento de perturbação e insatisfação descomunal, futuramente característico de toda arte contemporânea. Tamanha foi a intensidade deste sentimento, que deu nome ao gênero musical: Blues, a tristeza em português.(semelhante ao caso do Lundú, uma forma primordial de samba do século XIX e início do XX, normalmente de cunho sarcástico, e que também significa : mau humor.) Contemporaneamente, é comum que se saiba que o nome do gênero Blues advém do sentimento Tristeza, mas não é comum que se pergunte antes: qual seria a causa deste sentimento de tristeza? Para Roberto Muggiati, a origem desta tristeza estaria na diáspora ,separação forçada do homem negro de sua terra original. E o grito, tão característico primeiro do blues, e posteriormente do rock, seria a resposta `a violência exercida contra o povo negro. Portanto, nos anos 70, neste ensaio, o jornalista brasileiro Roberto Muggiati afirmou:” o rock nasceu de um grito, o grito do escravo negro ao pisar em sua nova terra, a América. Esses berros de estranha entonação eram atividades comuns entre os nativos da África Ocidental. O primeiro grito negro cortou os céus americanos como uma espécie de sonar, talvez a única maneira de fazer um reconhecimento novo e hostil que o cercava. A medida em que o escravo se afundava na cultura local- representada no plano musical pela tradição europeia – o grito ia se alterando, assumindo novas formas. Servia de suporte as canções de trabalho e as cantigas de escárnio, aos cantos religiosos, aos spirituals, a gospel songs e as canções de menestréis. Em torno do berro iam se aglomerando novos sistemas sonoros, mas ele permanecia a estrutura primeira, o núcleo da expressão musical negra” .Em seguida, o autor traça um esquema evolutivo da expressividade musical negra ao longo da história:
Grito > Blues > Rithm and Blues> Rock and Roll > Rock.
(jazz) (Hip-Hop/Funk/
Charme > Miami Bass > Funk Carioca) *
• Acrescentados por mim ao esquema de Muggiati, para estabelecer a ponte entre o caso dos Estados Unidos, e o caso do Brasil.
O caso do Brasil, como sempre, é mais delicado. O processo de escravidão aqui teve suas peculiaridades, e a repercussão musical destas violências é explicada em “A presença africana na música popular brasileira” do grande pesquisador de africanidades no Brasil, Nei Lopes. Neste texto, Nei fornece uma base para que se trace semelhante esquema sobre a linha evolutiva da música africana na música popular brasileira. Evidenciando como matrizes, as culturas de duas civilizações africanas: as culturas do povo do Congo, e as culturas do povo Nagô, ou Iorubá. Os povos que mais foram raptados para sujeição a trabalho escravo no Brasil. Tendo, segundo Lopes, os povos do Congo, e sua cultura se difundido mais pela região sudeste, o que teria dado origem ao samba, enquanto os Iorubá-Nagos teriam difundido sua cultura mais pela região nordeste, majoritariamente por meio das religiões, dando origem a outros gêneros como as congadas, o maracatu, o bloco-afro, e o que se conhece como Axé Music.
O axé music é a condensação mercadológica de elementos estéticos reclamados pelos movimentos de valorização da cultura negra. Impulsionados pelo que representou a popularização da cultura reggae da América Central(e o rastafarianismo que via na Etiópia sua terra sagrada), vários grupos de música com a proposta política de afirmar artisticamente a representação negra foram se voltar para este legado africano , e assim o Axé dá seus primeiros passos, até a total aglutinação pelo mainstream, esvaziando-o de seus significado, e postura de resistência africana. O mesmo acontece com o samba, por meio da capitalização do carnaval, corporificada pela figura das escolas de samba, e manifesta nos sambas enredo – que muitas vezes tratam de assuntos encomendados por grandes empresas, portanto são desprovidos de autenticidade, ou de real necessidade . Além de constituírem canções efêmeras, a serem esquecidas com o fim do carnaval.
Entretanto, até que uma manifestação musical negra seja aceita, e em seguida aglutinada ao seio mercadológico (ou senso estético) do atual estado da sociedade industrial, ela sofrerá muita resistência. São muitos os mecanismos de proteção que a cultura branca tenta usar contra a influencia das culturas de África. Se recorrermos a manifestações religiosas ,veremos os pensamentos e atos de intolerância cristã, que além de disseminar ódio, e incompreensão, fazem com que uma parte considerável da população negra renegue, ou abomine as culturas de matrizes africanas (Tenham medo de suas próprias raízes.) . Se recorrermos a exemplos históricos de gêneros musicais poderemos citar uma série de “danças proibidas”: maxixe, lambada,funk etc. A proibição oficial de determinados gêneros, característicos de culturas africanas desenvolveu uma ligação da cultura negra, com a cultura da marginalidade (jazz, rap, samba, funk), ou a cultura periférica (funk carioca, slam poetry), ou a contra-cultura (rock, capoeira), ou a sub-cultura . Todas denominações delicadas por evidenciar a não oficialidade de ser negro.
Nos dias de hoje, o funk carioca é o alvo mais evidente. Tanto de uma blindagem intelectual da crítica, da academia, da escola, da polícia e de uma mentalidade aristocrática, quanto da aglutinação violenta das proposições estéticas inauguradas pelo tamborzão eletrônico. A constante pasteurização dos artistas que surgem com alguma autenticidade é a rota para o sucesso no mercado musical de hoje. Depois que consegue alguma visualização através de uma música autentica, o artista de hoje é moldado segundo os requisitos musicais, visuais e ideológicos vigentes. A indústria lhe apaga qualquer viço de originalidade, e tenta aparar os elementos diferenciais, adequando-os ao que o mercado deseja por meio da produção de um hit. No mundo do funk, esse hit geralmente segue a linha do Funk melódico, ou Funk Melody . Que é por si só, um gênero esbranquiçado de funk. No funk melody, toda a agressividade, insatisfação, senso de humor, letras chocantes, e tom contestatório, característicos do funk carioca são dissolvidos e transformados em romance. O funk assim, se cala para as injustiças sociais, não retrata mais a vida na favela, não trás mais para o asfalto expressões idiomáticas do morro, e não simula a batida de um tambor africano . No lugar disso, adere ao discurso dominante do Status Quo: O amor, a conquista, a sedução . Abrindo mão, desta maneira, de particularidades que o caracterizam em nome de uma lógica generalizante. E se entregando a um embranquecimento mercadológico.
Portanto, reside no funk carioca, gênero brasileiro, negro, eletrônico e periférico, a
potencia transformadora e revolucionária da manifestação africana na música popular brasileira. E prova disto é, a enorme resistência que este gênero desperta ainda hoje , assim como o crescente interesse do mercado musical neste gênero, e na aglutinação destes artistas. Outra prova visível da importância do funk carioca para a história da música afrodiaspórica é a quantidade de artistas negros que produzem, e consomem o gênero, e politicamente a situação de não oficialidade e entrosamento que o gênero musical desenvolveu com o poder paralelo vigente nas comunidades do país.
Proposta de esquema evolutivo da expressividade musical negra no Brasil:
Grito > Cantiga > Lundú e Modinha > Maxixe/ Danças de Salão> Samba
&
Grito > Congadas e Afoxés > Maracatu e Blocos Afro > Manguebeat e Axé
& no caso do funk carioca:
Grito > Blues > Rithm and Blues> Rock and Roll > Rock.
(jazz) (Hip-Hop/Funk/
Charme > Miami Bass > Funk Carioca
BIBLIOGRAFIA: “ROCK, O GRITO E O MITO – A musica pop como forma de comunicação e contracultura.” Muggiati, Roberto. 1973, Vozes do mundo moderno.
“A PRESENÇA AFRICANA NA MUSICA POPULAR BRASILEIRA” Lopes, Nei. In Revista: Espaço Acadêmico, número 50. Julho/2005.
Ilustração - " Now`s The Time" 1985, Michel Basquiat
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