terça-feira, 22 de junho de 2021

Os porteiros detetives capítulo 1

1.um edifício do Andaraí




                                                           Silas


Jovem negro, 30 anos. Trabalha como porteiro no edifício do Andaraí. Cobre o turno da madrugada. Como um morcego dorme de manhã de cabeça pra baixo. Seu ônibus é o 606, seu  signo touro, seu time é o caos. Pelas tardes em seu apto no Méier, opta por concluir o seu mestrado em linguística na UERJ. Estuda remotamente devido a pandemia.
Nunca conheceu nenhum outro porteiro-linguista. Já porteiros-poetas eram todos, e em breve chegaria a conhecer e se tornar um porteiro-detetive.

                                                          Junim

Junim é um rapaz baixo de 26 anos, feições nordestinas. Carrega como uma coroa, o nome e a aspiração `a profissão do pai.

Severino Junior trabalha no edifício do Andaraí como faz-tudo.  Na carteira de trabalho está assinado “Zelador”, mas Junim é o Faz-tudo que aspira a ser Porteiro. Devoto de São Pedro ,e filho de Exú, Junim tem uma língua ágil até quando não fala nada. Seu crânio cearense lhe presenteava com olhos estudiosos, e orelhas pesquisadoras, ambas fornecedoras de dados que se abarrotavam em sua caixa craniana.

“é uma profissão muito bonita. A gente recebe as pessoas em suas próprias casas! É importante ser receptivo. As vezes alegra o dia de alguém.

Não é um serviço pra todo mundo, é preciso gostar de pessoas. Nós falamos com os moradores apenas por curtos minutos, e em certos casos  são suficientes pra conhecer toda a rotina de alguém, ou para não querer nunca mais interagir por tanto tempo com essa pessoa de novo. (Ri)”

Só que na segunda camada de seu eu, na camada mais profunda o que seduz Junim mesmo é a quantidade de informações a que uma portaria de prédio está exposta. Junim é dos que fazem das câmeras de segurança o seu BBB. Intuitivo, ele sabe perceber as mais sutis mudanças nos fluxos dos moradores a partir de seus comportamentos. Consegue perceber pelo cheiro quando alguém está para se mudar para um apartamento menor. (Cada vez mais comum com o avanço do Neoliberalismo econômico no Brasil.) Nesses casos, ele se amiga amanteigado, e se oferece para encaixotar móveis, objetos e carregar as caixas escada acima e abaixo, e assim se expõe ao risco de ganhar alguma tranqueira que o futuro ex-morador não pudesse mais ter. Nessa ele já ganhou uma televisão, um sofá, um fogão, um colchão, e uma bicicleta ergométrica, que hoje ele mesmo tenta repassar, já que ela realmente ocupa um baita espaço.

Apesar de só cobrir o Silas, o Mangaratiba e o Domingos na hora do almoço (de 12 as 14h), ele se deleita quando está na portaria. Parece um capitão em sua nave espacial.

‘ O Silas uma vez me emprestou um filme que deixou uma sombra na minha alma ao mesmo tempo que jogou uma lanterna no meu ofício. Não me lembro qual era o nome, mas a história ficou. Imagine você, um grupo de bacanas dá uma festança em sua casa, mas ninguém consegue sair! Por dias, as pessoas ficam presas na casa. Não lembro o nome do filme mas eu chamaria de “A falta que um porteiro faz!” Gosto de pensar em mim como alguém que abre e flecha os fluxos.”

Mais do que tudo na vida, Junim apreciava o entra e sai, entusiasmava-se com o crochê das vidas. Moradores, entregadores e visitas, puxava assunto e escutava delicadamente a todos. 

“Tá indo pra onde? Voltando da onde?” Inquiria o tom do sotaque cearense envolvendo as palavras que realmente dizia:” Boa Tarde Dona Amélia. Vai na Igreja? O Seu Valdeci, como é que é? Deixou algum pão na padaria? Fala campeão, só nas menininhas né? ééé”. 

Apesar de almejar o cargo de porteiro, Junim não faz pouco de seu ofício de Faz-tudo. Inclusive, aproveita sua posição para colher o máximo de informação que pode. Quando é porteiro, consegue saber para qual apartamento a entrega vai só de olhar no olho do entregador. (Claro que o horário da entrega também auxilia nessa adivinhação.) Quando é Faz-Tudo aproveita para conhecer a tubulação de cada apto, o sistema de fiação, até o transito do gás. Quando tem a chance de entrar em um apto, seus olhos bebem o espaço numa completa varredura que automaticamente uploada para sua mente de estimados 150 Terabytes.

                                                                                         Mangaratiba

O Mangaratiba mora lá em Mangaratiba! Se despenca de trem todo dia as 5 da manhã pra chegar as 10h no edifício do Andaraí e ser um velhinho gente fina. Mangaratiba ri e chora ao mesmo tempo, é uma pessoa especial. Ninguém sabe o seu nome, ninguém sabe como ele foi parar ali, rumores sugerem que ele sempre esteve. 

Além de ser uma figura cândida, meio atabalhoado, e sempre carinhoso em seu jeito de falar, o Manga era ainda Pai-de-Santo, iniciado nos mistérios de Ifá. (O sistema divinatório das culturas Africanas.) E, por isso, toda manhã consultava seus Búzios antes de sair parar trabalhar. Naquela manhã fria de Junho, ele tentou se consultar, mas durante três vezes, o jogo se recusou a oferecer-lhe resposta. Mangaratiba foi saculejante no trem tentando fazer respostas da não-resposta, jogando Búzios imaginário com os próprios ossos.

                                                    Domingos

Negro, 50 anos, cabeça quadrada como um Minecraft  adornado por um belíssimo cabelo enroladinho direto das capas dos discos de charme que ouvia na juventude.
É uma daquelas raras pessoas que tem um rosto que combina com seu nome, só que não se chama Domingos, seu nome é Abel. É chamado na portaria do edifício do Andaraí de Domingos porque só trabalha aos domingos.
Durante os outros dias da semana, o que ele faz é mistério até para ele mesmo.


                                                           Gabriel Pacheco

Síndico do Edifício do Andaraí. Branco de camisa polo.

                                              *

Aquela madrugada soltava vapores de cores incomuns. Silas chegava no edifício para cumprir o seu turno, mas tomou um balde de agua fria bem no espírito ao pisar no hall do prédio e encontrar o Domingos na portaria em plena quarta! O péssimo agouro era só a ponta de um iceberg que lhe gelaria a espinhela.
O síndico Gabriel Pacheco parecia mergulhado em palidez, e sua brancura fantasmagórica se intensificava a ponto de cheirar a requeijão. Junim, sentado de cabeça baixa no sofá do Hall sem o uniforme parecia arrasado. De soslaio revelou enormes olheiras sob os olhos gulosos que o encararam como a porta de um longo buraco por onde Silas escorregaria em espiral.

O Gabriel depois de um tempo tomou a palavra como quem toma um gole da cachaça mais azeda:


- mataram o Mangaratiba!


Imediatamente suas pernas amoleceram, e ele esqueceu aonde estava. Só podia ouvir a lembrança da risada e do jeito de olhar do velho Mangaratiba.  Quando chegava alguma entrega, o Mangaratiba divertia pelo estilo direto e reto. Se era delivery de bolo, ele interfonava para o apto, mau esperava a pessoa dizer “alo”, e mandava na lata: “Bolo!” E desligava imediatamente. Também não esperava a confirmação do morador, ou o aviso de que estava descendo. A vida é curta, e quem deixaria um bolo esperando? Sim, a vida é curta. Era esse o subtexto que o Mangaratiba atrelava ao seus abruptos avisos. Curta e  tão grossa que agora apagava uma vida daquela assim...


- Como?

- Tiro. Atiraram nele bem aqui na portaria. (Gabriel aponta para o lugar onde está Domingos. Domingos vomita no chão.)

- O que? Mas o vidro que dá pra rua não tá nem arranhado!

- Também não entendemos. Parece que acertaram bem enquanto a porta tava aberta . . .

- Mas . . mas

- Serviço de profissional . .. (Acrescentou Junim cabisbaixo.)

- Olha, Silas, nós vamos redobrar a segurança. A polícia foi avisada, vai fazer rondas no entorno. Cuidado redobrado quando for abrir o portão. Enviamos um comunicado aos moradores, eles vão tentar entrar e sair mais rapidamente e sem abrir tanto assim a porta . Tente ficar calmo 

- Tá, mas quem matou o Mangaratiba? Quem teria motivo para eliminar um coroa tão boa gente? (chora copiosamente.) Porra Manga, que saudades já! E o corpo dele, foi pra onde?

- Advinha !


3 comentários:

Rafael Ayres disse...

Ótima história. Ahahaha acho que o junim teria motivos. mas sempre vou desconfiar de alguém com camisa pólo.

Perdiga disse...

Ficou brabo, titio!! R.I.P. Manga

Anônimo disse...

Adorei, muito bom amigo