sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Docinho de uva


Uma barraca móvel de doces. Andei em torno de vinte minutos, da minha casa até lá. Pelo doce de uva. Era o segundo dia que eu andava até lá, exclusivamente pelo doce de uva. Porque é bem bom. Mas em nenhum dos dois dias tinha sobrado nenhum . Porque é bem bom.
Hoje é o segundo dia do ano. O outro dia que eu tinha tentado era o penúltimo dia do ano passado. A moça disse que o de uva não tinha mais não. Mas do de queijo ainda tinha um . Eu comprei mas não comi. Está guardado para dar de presente. Comi um casadinho.
Hoje não tem o de uva . Da outra vez eu levei um casadinho para compensar a falta do de uva. E era bastante bem feito, até para um docinho clássico comum. Fiquei procurando o substituto perfeito . Vi que tinha até de nozes, talvez fosse uma. Não tinha o de uva , não tinha o de queijo, e a moça que normalmente atendia na barraca não estava lá. Confiando na qualidade do casadinho resolvi leva-lo.
-       me vê um casadinho ,por favor?  
Pergunto ao senhor que maneja a barraca.
-        . . .
-       me vê um casadinho, por favor?
-       Casadinho.
E o senhorzinho me passa o doce ensacado e com um guardanapinho. Em troca de uma nota de dois .
-       O de uva acabou, né?
-        . . .
-       O de uva não tem né?
-       O de uva eu nem fiz! Eu comprei umas uvas mas elas tinham caroço, aí achei melhor nem fazer.
-       Eu não me incomodaria.
-       Ah mas eu achei melhor não fazer. Porque eu não quero que o pessoal diga que eu estou enganando, você  está me entendendo? Digo que o doce é sem caroço e vendo com caroço.
-       Mas o pessoal reclama disso?
-       Olha, moço, eu sempre trabalhei com a uva sem caroço. Se eu boto uma uva caroçuda aqui, vão dizer que decaiu o nível. Você está me entendendo agora? O problema do doce de uva é que o único lugar que vende uva que presta, é no horti-frutti. Uva boa, uva sem caroço, limpinha, entendeu? A uva, quando você lava, ela tem aquelas marcas, aquelas impurezas que aquilo ali sai tudo. As dos outros lugares são tudo porcaria!
-       Ah é ?
-       Uva pro doce tem que ser: sem caroço, limpinha, e verdinha. Eu comprei essas uvas pra fazer simpatia. E agora  com a festa de Reis, talvez ainda de pra usar .Mas não dá pra fazer os doces com elas não .  Esses doces aqui (bate na bancada superior da barraca, onde estão : doces de leite condensado, brigadeiros , casadinhos, doces de nozes e algumas balas de coco.)  são tudo de hoje! Agora com este calor não tá saindo quase doce .
-       Ta muito quente.
-       É. Antigamente eu pingando de suor aqui vendia doce o dia inteiro. Agora, vê aqui (aponta os doces da bancada inferior da barraca, que são : brigadeiros, casadinhos e doces de leite condensado .) esses aqui são de ontem . (Pega um brigadeiro ensacado e um guardanapinho) esse daqui é cortesia. Pode comer.
-       Oh, brigado . (abrindo e comendo.)
-       Olha ai. Não ta bom?
-       Bem bom.
-       Bem bom. Não disse. Esse daí é de três dias atrás! Esse docinho aguenta sete dias. E ainda garanto pra você que é melhor que o da Colombo! Não to dizendo? Esses dias eu fui lá na Colombo né, até pra ver né, você ta me entendendo?, como é que andam os doces.
-       .  . . e ai? . . .
-       Umas miserinhas de doce, e vai pagar no mínimo seis reais. O moço, uma coisa que comigo não tem é enganação . Não engano meus clientes. Eu vendo doce.  Eu vendo alegria . Eu vendo festa!
Não pode ter nada de ruim junto não . A minha filosofia é essa, que nos primeiros sete, seis dias do ano você tem que fazer coisas boas . Você ta me entendendo? Ajudar quem você puder ajudar. Pensar em coisas boas . Coisas positivas. Fazer o seu trabalho que é pra embalar,  e seguir o ano todo assim. Pra que enganar o cliente? Ah não. Não gosto de ser enganado e por isso não engano. Se me enganar também, vai ser uma vez só!
-       é  . . .
-       essa barraca aqui, o moço, tem 34 anos de licença! Eu gosto de ter credibilidade.  Eu tenho cliente que me paga quatrocentos reais andiantado ! – “Pumba. Avelino, entrega lá na minha casa” o cento de doce! Eu vou. Eu vou. Você já viu isso?? Heim?
-       ...não . . .
-       Entrego doce na casa. Esses dias mesmo veio uma moça pedir pro aniversário dela . Eu descobri que a moça era filha de uma cliente antiga! Passava aqui pequena. Ih, muita gente compra doce aqui comigo. É que agora eu não tenho ficado mais aqui . Quem fica mais é a menina . . . mas rapaz, com ela . . . eu perdi muita venda.
-        . . .é mesmo? . . .
-       Perdi. É porque antigamente tinha cliente que pedia em casa, aí os garotos, o pessoal que trabalha aí, né? Eles iam levar até a casa da senhora, e ela toda vez deixava dez, quinze reais pra quem fizesse a entrega ! Então o pessoal adorava ir. Eu não gostava de ir justamente pra dar chance, né. Agora essa menina não. Ela não faz entrega .
-        . . .ih . . .
-        Pois é. Eu podia falar pra ela : - “Olha, não vai dar mais pra ficar com você não, tá, té logo.”  Que eu não tenho nenhuma dívida com ela. Tá tudo pago. No máximo eu ia dar o dinheiro da passagem, pra ela voltar pra casa. Mas eu não faço isso porque a gente nunca sabe o dia de amanhã, você está me entendendo?
-        . . . pois é . . .
-       E eu gosto de pagar adiantado . Sabe porque? Que é pra não chegar no fim da semana ter que pagar trezentos reais, prefiro pagar logo no começo do turno aqui. Pumba . Você nunca vai ver gente aqui parada : - “ah, to esperando o Avelino me pagar.”
-        . . . ta certo . . .
-       Eu garanto que não tem doce melhor do que o meu no Rio de Janeiro. Muita gente compra doce aqui comigo . Eu gosto de ter credibilidade. É senhora, criança, advogado, ministro, todo mundo comprando doce comigo aqui. Você lembra do coroa que trabalhava aqui? (encarando desafiadoramente.) Não lembra, né? Coroa! Mais velho do que eu. O cara tinha duas faculdades! Era filosofia e . . . era filosofia . . .e algum outro negócio lá, acho que matemática! Duas faculdades, o coroa , setenta e poucos anos , mais velho do que eu, trabalhando aqui de uma as seis aqui na barraca . E não era pelo dinheiro não. Não era pelo dinheiro não, porque ele era professor. Professor universitário .Botava dois alunos dentro de casa, e pronto, dava pra tirar o dele.
E mais . O cara ainda é primo de ministro! é, do ministro Sepúlveda Pertence! Ou seja, não era pelo dinheiro que ele trabalhou aqui. Foi sabe pra que? Pra me ajudar!
-       . .. caramba!
-       Pois é. Agora essa menina diminuiu muito as minhas vendas . . . mas só ela e uma outra sabem fazer esse tipo de cocada que eu vendo. Porque é um tipo de doce especial. Que tinha uma família que sabia fazer , e ganhou tanto dinheiro que comprou até, sabe o que? Yate em Muriqui!!
-       . . . po . . .
-       é! Mas ela não é dessa família não, só trabalhou na casa da família e aprendeu. Aí se eu mando ela embora, vou ter que ir lá no morro buscar a cocada. Aí vai que os bandidos me entendem mal, e pensam que eu sou viciado. Ou então que eu sou da polícia e estou lá marcando a deles. Agora, eu tinha combinado com ela que eu ia precisar de cocada . Marquei com ela aqui ontem . Ela me disse que achou que eu não viria porque é ano novo, essas coisas.
Hoje tem a cerimonia dos capuchinhos, que a coqueluche lá é uma simpatia justamente com cocada. Primeira sexta feira do ano e eu perdi! Mas, não faz mal . Não da pra reclamar não, o moço. Afinal o que eu vendo é doce !
-       ta certo, seu Avelino. O doce de uva volta quando?
-       Vai passar aqui amanhã?
-       Passo.
-       Então pode vir que vai ter .



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