domingo, 1 de março de 2020

O castelo, o livro chave de Franz Kafka

O castelo todo enterrado no crepúsculo deixa o protagonista entrever sua silhueta indiferente. Da mesma maneira que, Kafka nos deixa vislumbrar a história em seu desenrolar cinematográfico e, por isso, sombrio, o texto nos oferece um mundo por partes. Do protagonista, desta vez, temos apenas parte de seu nome: K. Como uma silhueta, um vulto, uma aparição na incompletude.  Não sabemos bem quem ele é, podemos apenas calcular quem ele pode ser. Pode ser Joseph K, protagonista de O processo continuando seu calvário burocrático, pode ser uma referencia ao próprio nome do autor, ou os dois ao mesmo tempo?
Em uma anotação de 1922 a respeito de O castelo Kafka disse:
“alguns livros funcionam como uma chave para as salas desconhecidas do nosso próprio castelo.”
Reflexão que nos abre o olho para o papel de K como agente externo da trama. O enigmático protagonista atua exclusivamente como um estrangeiro, forasteiro bárbaro que não conhece, nem consegue se adequar `as leis vigentes na aldeia que circunda o castelo. Na maior parte da narrativa, o que K faz é destoar, e agir como um vírus introduzido no interior de um sistema. O que talvez seja uma das mais fortes características da escrita de Franz Kafka ; a inadequação.
O castelo, como O processo tecem as teias de uma malha burocrática regida pelo autoritarismo despropositado. Os dois protagonistas, como chaves, se introduzem no seio desse sistema automatizado e reificado, para exibirem seu interior oco. Podemos entender O castelo como romance chave a partir de seu poder de síntese dos temas da obra literária de Franz Kafka .
Kafka tem um jeito estranho de escrever, abundam paradoxos, transgressões lógicas, e uma maneira muito visual de pensamento vivaz. É comum encontrarmos cenas extravagantes, sem muito detalhamento de suas causas lógicas. Ou seja, o mundo ali ou é outro, ou é regido por leis desconhecidas, ou enigmáticas. Se pensarmos por exemplo em A metamorfose, nunca nos é explicado o motivo, ou causa que transformou Gregor Samsa em um inseto gigante . Não se tratando de uma questão de magia, nem de tecnologia ( comuns em textos de Fantasia e Ficção Científica.) A narrativa de O castelo avança na força do paradoxal, ou no passo das incertezas. Não sabemos se K. é mesmo um agrimensor contratado, ou se foi a situação que o forçou a improvisar um posto para ser aceito na sociedade. Não sabemos o que foi K fazer nesta aldeia com castelo. Não sabemos suas motivações anteriores, nenhum objetivo que não seja ser aceito pela sociedade funcional da aldeia do castelo. Sociedade esta que é movimentada por um tonteante jogo de distribuição de poder, que como em O processo, infernizam e atordoam protagonista e leitor. Nenhuma aliança pode ser comprovada de modo claro em relação a K. Todos os membros daquela sociedade parecem receosos e escorregadios.  É uma narrativa porosa,  de vácuos que se insinuam constantemente. Saber que discurso usar ,e com quem, saber quando não admitir e saber quando se submeter, parecem as especialidades do protagonista, que mesmo com todo traquejo social malogra e se perde em seus enredos.
Um resumo tosco do livro poderia ser esse: sujeito que para alcançar uma miragem tem que se submeter a lidar com diversas autoridades, que de modo dúbio e paradoxal lhe proporcionam um conjunto de vivencias. No entanto, essa miragem, essa imagem tremula de um castelo, essa miração impenetrável, apesar de intocável, exerce seu poder por meio de figuras de autoridade. O que serve ,então, como ameaça ao longo de todo livro é a virtualidade do poder. Um poder virtual que emana de um castelo inalcançável, e que se faz sentir pelos seus representantes reais.
O castelo, misteriosa presença ausente que se insinua para dentro e para fora da historia. Sensual como uma parte do corpo que se revela e em seguida some. Ao desejo do protagonista de tocar o real do castelo, os camponeses reagem com desconfiança, medo e até chamam o ímpeto de egoísmo. Ao mesmo tempo, jamais o narrador nos explica de que maneira K pretende resolver sua situação de imigrante ilegal uma vez que sua linha do horizonte for alcançada. Também não dá nenhum indício de que ele possa desistir de sua meta.
O livro apesar de não ter final, não é desprovido de um desfecho enigmático : “falava com esforço, era preciso se esforçar para entende-la, mas o que ela disse” ...  ao final da leitura, fica a especulação de que este livro seja sobre laços sociais, sobre submissão e amor e sobre institucionalização do poder. Uma leitura labiríntica, recheada com imagens expressionistas colocações paradoxais como por exemplo : “ o que teria me induzido a vir, que não o desejo de ficar”, e o constante erguer de aporias, como a construção de um prédio de espera, onde as pessoas ficariam apenas aguardando para entrar em outro lugar. Ou, como no trecho a seguir :
“impusera que as pessoas, que primeiro haviam esperado simplesmente num corredor, depois na escada, em seguida na soleira, mais tarde no balcão de bebidas, fossem finalmente empurradas para a rua.”