domingo, 24 de maio de 2009

massa cinzenta



massa cinzenta.



Daqui do início do século XXI,limiar da primeira década.Eu disseco uma cabeça jovem.Já sem idéias,oca mas de repugnância humana e com feições paternais,que me desconcertam a tal ponto que meu bisturi fica me escorregando da mão e caindo na bacia.Estou fumando e ouvindo João Donato.

Tenho sonhado em altíssima velocidade, por noite, vivo uma média de quarenta e sete histórias despreocupadas de seus finais e de intensidade na desenvoltura tão avantajada que minhas pálpebras têm rápidos espasmos noite a dentro.Vi sobre isto uma vez em um filme,e tanto o personagem quanto eu vemos este fenômeno com bons olhos.

O desgraçado que tive que tomar tanta coragem para analisar com dedicação científica,não devia sonhar com muita agilidade,isso é notável se examinadas as suas pálpebras.Também não carrega a expressão de quem em vida sonhou o suficiente.Inspira autoridade e cansaço.Dos sonhos que eu sonhei,será que algum já passou por esta cabeça?Sempre é possível: vivíamos no mesmo país,sujeitos a algumas mesmas influências nas idéias, ao mesmo Sol na carcaça.E além do mais,como tenho sonhado rápido,tenho sonhado muito e isto aumenta a probabilidade de termos tido já o mesmo sonho.

Quando recorto fora o tampão do topo da cabeça,consigo sentir cheiro dos raciocínios murchos que apodreceram e também de alguns desejos que morreram sem nunca se concretizar,para onde vão estas idéias que nunca se concretizam?Elas bóiam no cérebro enquanto você está vivo,mas e depois?Será que são tão do sujeito que vão embora junto com ele?Ou será que vão embora antes mesmo da morte: as idéias ficam guardadas na memória e quando a idade se adensa começam a escoar da pessoa, pelo xixi, pelas lágrimas e assim indo embora para tentar serem concretizadas pelas cabeças de outros?

As idéias não concretizadas são como os fetos abortados,a diferença é que o tempo de gestação de uma idéia só depende da memória do criativo e de sua afeição por ela,e quando penso afeição,me refiro a algo das profundezas da raiz desta idéia que vá condizer e ser irmão com algo das profundezas de quem a pensou,o parto só é feliz se quem vai parir já identificou o novo ser como um outro dele.Assim sendo,ao deixarmos de lado idéias que gritam para fazer parte da realidade,e têm muito de nós nelas,assassinamos possibilidades,dando razão ao mundo em detrimento a darmos razão a nós mesmos e as nossas opiniões,que quanto mais numerosas mais capazes de demonstrar ao mundo diversos aspectos de ser você.O João Donato acabou.

Está ficando tarde, assim que extrair este cérebro volumoso vou me deitar, estou curioso pelos meus sonhos,talvez dessa ansiedade dos segundos antes de dormir que eu vá sentir mais falta quando for dormir pela última vez.

Ele deita e ele morre

Mas nunca sentiu falta

Da tal ansiedade



*inspirado em Hamlet,inspirado no Samba da cabeça,inspirado em Sobre Café e Cigarros,e condizente com inquietações próprias.