Uma barraca
móvel de doces. Andei em torno de vinte minutos, da minha casa até lá. Pelo
doce de uva. Era o segundo dia que eu andava até lá, exclusivamente pelo doce
de uva. Porque é bem bom. Mas em nenhum dos dois dias tinha sobrado nenhum .
Porque é bem bom.
Hoje é o
segundo dia do ano. O outro dia que eu tinha tentado era o penúltimo dia do ano
passado. A moça disse que o de uva não tinha mais não. Mas do de queijo ainda
tinha um . Eu comprei mas não comi. Está guardado para dar de presente. Comi um
casadinho.
Hoje não tem
o de uva . Da outra vez eu levei um casadinho para compensar a falta do de uva.
E era bastante bem feito, até para um docinho clássico comum. Fiquei procurando
o substituto perfeito . Vi que tinha até de nozes, talvez fosse uma. Não tinha
o de uva , não tinha o de queijo, e a moça que normalmente atendia na barraca
não estava lá. Confiando na qualidade do casadinho resolvi leva-lo.
-
me
vê um casadinho ,por favor?
Pergunto ao
senhor que maneja a barraca.
-
. . .
-
me
vê um casadinho, por favor?
-
Casadinho.
E o
senhorzinho me passa o doce ensacado e com um guardanapinho. Em troca de uma
nota de dois .
-
O
de uva acabou, né?
-
. . .
-
O
de uva não tem né?
-
O
de uva eu nem fiz! Eu comprei umas uvas mas elas tinham caroço, aí achei melhor
nem fazer.
-
Eu
não me incomodaria.
-
Ah
mas eu achei melhor não fazer. Porque eu não quero que o pessoal diga que eu
estou enganando, você está me
entendendo? Digo que o doce é sem caroço e vendo com caroço.
-
Mas
o pessoal reclama disso?
-
Olha,
moço, eu sempre trabalhei com a uva sem caroço. Se eu boto uma uva caroçuda
aqui, vão dizer que decaiu o nível. Você está me entendendo agora? O problema
do doce de uva é que o único lugar que vende uva que presta, é no horti-frutti.
Uva boa, uva sem caroço, limpinha, entendeu? A uva, quando você lava, ela tem
aquelas marcas, aquelas impurezas que aquilo ali sai tudo. As dos outros
lugares são tudo porcaria!
-
Ah
é ?
-
Uva
pro doce tem que ser: sem caroço, limpinha, e verdinha. Eu comprei essas uvas
pra fazer simpatia. E agora com a festa
de Reis, talvez ainda de pra usar .Mas não dá pra fazer os doces com elas não
. Esses doces aqui (bate na bancada
superior da barraca, onde estão : doces de leite condensado, brigadeiros ,
casadinhos, doces de nozes e algumas balas de coco.) são tudo de hoje! Agora com este calor não tá
saindo quase doce .
-
Ta
muito quente.
-
É.
Antigamente eu pingando de suor aqui vendia doce o dia inteiro. Agora, vê aqui
(aponta os doces da bancada inferior da barraca, que são : brigadeiros,
casadinhos e doces de leite condensado .) esses aqui são de ontem . (Pega um
brigadeiro ensacado e um guardanapinho) esse daqui é cortesia. Pode comer.
-
Oh,
brigado . (abrindo e comendo.)
-
Olha
ai. Não ta bom?
-
Bem
bom.
-
Bem
bom. Não disse. Esse daí é de três dias atrás! Esse docinho aguenta sete dias.
E ainda garanto pra você que é melhor que o da Colombo! Não to dizendo? Esses
dias eu fui lá na Colombo né, até pra ver né, você ta me entendendo?, como é
que andam os doces.
-
. . . e ai? . . .
-
Umas
miserinhas de doce, e vai pagar no mínimo seis reais. O moço, uma coisa que
comigo não tem é enganação . Não engano meus clientes. Eu vendo doce. Eu vendo alegria . Eu vendo festa!
Não
pode ter nada de ruim junto não . A minha filosofia é essa, que nos primeiros
sete, seis dias do ano você tem que fazer coisas boas . Você ta me entendendo?
Ajudar quem você puder ajudar. Pensar em coisas boas . Coisas positivas. Fazer
o seu trabalho que é pra embalar, e
seguir o ano todo assim. Pra que enganar o cliente? Ah não. Não gosto de ser
enganado e por isso não engano. Se me enganar também, vai ser uma vez só!
-
é . . .
-
essa
barraca aqui, o moço, tem 34 anos de licença! Eu gosto de ter
credibilidade. Eu tenho cliente que me paga
quatrocentos reais andiantado ! – “Pumba. Avelino, entrega lá na minha casa” o
cento de doce! Eu vou. Eu vou. Você já viu isso?? Heim?
-
...não
. . .
-
Entrego
doce na casa. Esses dias mesmo veio uma moça pedir pro aniversário dela . Eu
descobri que a moça era filha de uma cliente antiga! Passava aqui pequena. Ih,
muita gente compra doce aqui comigo. É que agora eu não tenho ficado mais aqui
. Quem fica mais é a menina . . . mas rapaz, com ela . . . eu perdi muita
venda.
-
. . .é mesmo? . . .
-
Perdi.
É porque antigamente tinha cliente que pedia em casa, aí os garotos, o pessoal
que trabalha aí, né? Eles iam levar até a casa da senhora, e ela toda vez
deixava dez, quinze reais pra quem fizesse a entrega ! Então o pessoal adorava
ir. Eu não gostava de ir justamente pra dar chance, né. Agora essa menina não.
Ela não faz entrega .
-
. . .ih . . .
-
Pois é. Eu podia falar pra ela : - “Olha, não
vai dar mais pra ficar com você não, tá, té logo.” Que eu não tenho nenhuma dívida com ela. Tá
tudo pago. No máximo eu ia dar o dinheiro da passagem, pra ela voltar pra casa.
Mas eu não faço isso porque a gente nunca sabe o dia de amanhã, você está me
entendendo?
-
. . . pois é . . .
-
E
eu gosto de pagar adiantado . Sabe porque? Que é pra não chegar no fim da
semana ter que pagar trezentos reais, prefiro pagar logo no começo do turno
aqui. Pumba . Você nunca vai ver gente aqui parada : - “ah, to esperando o
Avelino me pagar.”
-
. . . ta certo . . .
-
Eu
garanto que não tem doce melhor do que o meu no Rio de Janeiro. Muita gente
compra doce aqui comigo . Eu gosto de ter credibilidade. É senhora, criança,
advogado, ministro, todo mundo comprando doce comigo aqui. Você lembra do coroa
que trabalhava aqui? (encarando desafiadoramente.) Não lembra, né? Coroa! Mais
velho do que eu. O cara tinha duas faculdades! Era filosofia e . . . era
filosofia . . .e algum outro negócio lá, acho que matemática! Duas faculdades,
o coroa , setenta e poucos anos , mais velho do que eu, trabalhando aqui de uma
as seis aqui na barraca . E não era pelo dinheiro não. Não era pelo dinheiro
não, porque ele era professor. Professor universitário .Botava dois alunos
dentro de casa, e pronto, dava pra tirar o dele.
E
mais . O cara ainda é primo de ministro! é, do ministro Sepúlveda Pertence! Ou
seja, não era pelo dinheiro que ele trabalhou aqui. Foi sabe pra que? Pra me
ajudar!
-
.
.. caramba!
-
Pois
é. Agora essa menina diminuiu muito as minhas vendas . . . mas só ela e uma
outra sabem fazer esse tipo de cocada que eu vendo. Porque é um tipo de doce
especial. Que tinha uma família que sabia fazer , e ganhou tanto dinheiro que
comprou até, sabe o que? Yate em Muriqui!!
-
.
. . po . . .
-
é!
Mas ela não é dessa família não, só trabalhou na casa da família e aprendeu. Aí
se eu mando ela embora, vou ter que ir lá no morro buscar a cocada. Aí vai que
os bandidos me entendem mal, e pensam que eu sou viciado. Ou então que eu sou
da polícia e estou lá marcando a deles. Agora, eu tinha combinado com ela que
eu ia precisar de cocada . Marquei com ela aqui ontem . Ela me disse que achou
que eu não viria porque é ano novo, essas coisas.
Hoje
tem a cerimonia dos capuchinhos, que a coqueluche lá é uma simpatia justamente
com cocada. Primeira sexta feira do ano e eu perdi! Mas, não faz mal . Não da
pra reclamar não, o moço. Afinal o que eu vendo é doce !
-
ta
certo, seu Avelino. O doce de uva volta quando?
-
Vai
passar aqui amanhã?
-
Passo.
-
Então
pode vir que vai ter .
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